Autor: Murilo Peixoto Gonçalves 1
Data de Publicação: 11/11/2024
Revisor: Mell Monteiro
I. Introdução
O Mar Negro é um grande corpo d’água euroasiático, responsável por conectar, através das rotas marítimas que cruzam o Estreito de Bósforo e o Estreito de Dardanelos (na porção turca), a Rússia e a Ucrânia ao Mar Mediterrâneo, ou seja, serviria de “porta de entrada” de ambos os países ao mundo. Sede de grandes portos, como o porto alvo de diversas disputas Sebastopol, na Crimeia, Mariupol, no Mar de Azov (adjacente ao Mar Negro) e o Grande Porto de Odessa (Odessa, Chornomorsk e Yuzhny), importantes escoadores das produções russas e ucranianas, assim como peças fundamentais no controle geopolítico da região e do conflito.
II. O escoamento de produções
Em julho de 2023, o governo russo suspendeu a Política de Grãos (a Iniciativa Grãos do Mar Negro; IGMN), instituída entre Rússia, Ucrânia e Turquia em 2022, visando a comercialização da produção agrícola dos dois países em guerra, responsáveis por grande parcela da capacidade produtiva mundial de cereais e fertilizantes. Contudo, tal medida não teve tamanho impacto no consumo e vendas dos produtos ucranianos: em Odessa, por exemplo, houve a exportação de 12 milhões de toneladas de cereais no primeiro trimestre de 2024 (principalmente, a venda de trigo); isto se deve, especialmente, aos triunfos militares ucranianos no Mar Negro naquela ocasião, que impediram ataques russos aos importantes portos mencionados. Com isso, Moscou e Kiev evitam a alavancada de um maior conflito marinho, visto que a Ucrânia utiliza rotas búlgaras e romenas para o comércio e a forte presença da Frota do Mar Negro russa.
Além disso, os portos russos neste corpo d’água representam, aproximadamente, 1/3 das exportações da Rússia: as movimentações marítimas aumentaram em 2023, porém registraram uma queda em 2024. O trigo-russo (US$ 211 por tonelada), nesse sentido, consegue superar o preço da União Europeia (US$ 222) e dos Estados Unidos (US$ 272), conquistando mercados africanos e asiáticos das proximidades, o que mostra o porquê de a Rússia continuar sendo, pelo 5° ano consecutivo, o maior exportador desse bem. Tal como mostra o seguinte gráfico sobre os maiores produtores de trigo na safra 2023/24:
Gráfico 1: Ranking Exportadores
Fonte: USDA – maio 2023. Elaboração própria.
Como é evidenciado pelo gráfico, a Rússia é o maior exportador de trigo, e tal qual a Ucrânia, ainda recorre às rotas do Mar Negro para o escoamento dessa produção ao resto do mundo; antes do conflito armado, ambos os países eram responsáveis por cerca de 25% das exportações de trigo (que transitavam pelo Mar Negro). A Guerra, por fim, aumentou as preocupações quanto aos preços e ofertas dessa commoditie e de outros grãos, contudo, desde o fim do acordo entre os dois países, as exportações e movimentações marítimas aumentaram.
O milho acaba sendo o maior expoente das transações internas ao mar, correspondendo a cerca de 50% da comercialização das commodities. O cereal produzido na Ucrânia e na Rússia, assim como o trigo, é utilizado, de acordo com as Nações Unidas, para programas internacionais de combate à fome em locais com os piores índices de pobreza no mundo.
Gráfico 2: As Mercadorias de destaque
Fonte: Organização das Nações Unidas – elaboração própria.
O gás russo, através de dutos, é outro produto com influência na região, especialmente nas proximidades da Crimeia, que visam abastecer as instalações russas na península e países compradores deste bem. Por exemplo, Blue Stream é um desses importantes dutos, com mais de 1200 km de extensão que transporta o gás russo, por meio do Mar Negro, até a Turquia (o 4° maior importador do recurso energético), que atua como “distribuidora” no Oriente Médio. Controlador dos estreitos de Bósfora e Dardanelos, de entrada/saída, o país euroasiático revelou, ainda, que não impedirá a passagem de embarcações russas, como foi pedido pela OTAN, organização militar da qual a Turquia faz parte.
III. A Crimeia nesse cenário
Anexada em 2014 pela Rússia, a península é de extrema importância para ambos os países. Contemporaneamente, sob controle de Moscou, ela utiliza a moeda russa e trata-se de, para o governo de Putin, uma Zona Econômica Especial (ZEE), apropriando-se, também, da legislação.
A Ucrânia, em uma tentativa de diminuir o controle russo sobre a região, atacou, entre julho de 2023 e o primeiro semestre de 2024, a gigantesca ponte que liga a península da Crimeia à Rússia, importante para o exercício do controle russo. Isso se dá, especialmente, por conta da base militar secular russa, fundada em 1793, em Sebastopol, importante cidade portuária de “águas profundas sem gelo no inverno” sob domínio russo na península, a partir da Frota do Mar Negro, subdivisão da marinha de Moscou. Tal fator, por fim, explica a presença constante de ataques de Kiev, financiados e equipados pela OTAN, à Crimeia, anexada à Rússia: com o controle de Sebastopol, Putin consegue, graças ao projeto de 2014, se projetar para o Mediterrâneo, controlando e balanceando a presença estadunidense na região.
IV. Outras questões geopolíticas
A Rússia tem interesse no Mar Negro desde o Império czarista russo, como forma de influenciar a geopolítica do Mediterrâneo, uma região que conecta Europa, ao norte africano e Oriente Médio. Atualmente, a Rússia consegue acessar, graças ao controle sobre esse corpo d’água, distantes parceiros militares, como a Síria.
Odessa é outro grande porto do Mar Negro, no território Ucraniano e com grandes influências arquitetônicas e culturais de países da Europa ocidental. A cidade é muito requisitada por Moscou, em uma tentativa, de acordo com Putin em discursos, de instituir uma “Nova Rússia”, com bases imperiais. A localização geográfica desta, na costa oposta ao litoral russo no Mar Negro, garantiria, se estivesse sob controle de Moscou, uma hegemonia da Rússia no corpo d’água.
V. Considerações Finais
Em suma, o Mar Negro continua, mesmo com a Guerra, sendo importantíssimo para o escoamento das produções ucranianas e russas. A Política de Grãos, visando ceder livre passagem a navios com cargas alimentícias, acabou sendo rejeitada pela Rússia, o que não diminuiu as exportações da Ucrânia e nem gerou diminuição da oferta dessas commodities no mercado internacional.
O Governo de Putin, enfim, não deseja uma escalada dos conflitos marítimos, desejando manter a Guerra “controlada” no nordeste e leste ucranianos e, após o fim das hostilidades, continuar tendo tutela sobre a Crimeia. Portanto, a Rússia continuaria exercendo sua influência sobre o Mar Negro, contrabalanceando com a OTAN e usufruindo dos seus portos.
VI. Referências
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- Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail de contato do autor: mupeixotog@gmail.com ↩︎
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