Autor: Emanuelly Araújo Ferreira1
Data de Publicação: 12/11/2024
Revisor: Richard Rodrigues
I. Introdução
A XVI Cúpula do Brics aconteceu em Kazan, na Rússia, entre os dias 22 e 24 de outubro desse ano e trouxe ao debate internacional pautas diversas de colaboração entre os países membros do bloco e suas implicações para a política mundial. Dentre as principais propostas trazidas e enfatizadas pelos países membros, foi a iniciativa de desdolarização da economia, que já havia sido abordada em cúpulas passadas com as iniciativas de desenvolvimento de uma moeda comum de comercio intrabloco e a do banco dos BRICS. Contudo, essa proposta toma ainda mais força com a entrada de novos membros e a consequente expansão do bloco e do seu caráter antiocidental.
Nesse sentido, o presente informe pretende analisar quais são as motivações da iniciativa de desdolarização da economia pelos BRICS e o impacto dela para a ordem internacional, trazendo para discussão como a hegemonia do padrão dólar é utilizada não apenas para fins de trocas comerciais, mas também como uma arma norte-americana. Além de debater algumas resoluções apresentadas ao final da última Cúpula na Rússia, em especial os desafios do projeto de desdolarização econômica e suas implicações para o Brasil com o cenário do bloco cada vez mais intransigente a hegemonia estadunidense.
II. A origem da dominância do dólar na economia mundial
Em 1944, é assinado o acordo de Bretton Woods – em vias de tornar a moeda americana como o lastro da economia internacional – que determinou a criação taxas fixas de câmbio no dólar, com lastro em ouro, além de promover a criação de duas importantes instituições não governamentais, o Fundo monetário internacional (FMI) e o Banco Mundial. No entanto em 1971, o então presidente Nixon anunciou a suspensão da conversibilidade em ouro. Com isso, o dólar passou a adotar o câmbio flutuante, tendo como referência apenas o dólar, o que significa que o único limite para o seu uso agora é a confiança no valor da moeda, fator que contribuiu ainda mais para a autonomia norte-americana e o crescimento do seu poder econômico na ordem internacional.
III. Os prejuízos da dominância do dólar
1. O uso do dólar como arma dos norte-americanos
Nos dias atuais, ganha cada vez mais espaço na mídia as consequências negativas da centralidade da gerência do capital financeiro global no dólar e sua função instrumental aos EUA, tornando-se uma ferramenta de intervenção econômica e política dos país. Nesse sentido, é possível analisar as sanções econômicas de Washington à Cuba, Venezuela, Irã, Coreia do Norte e a Rússia como uma tentativa de se sobrepor dentro da balança de poder internacional e excluir aqueles que vão contra seus princípios, já que a dominância do dólar dentro de toda a cadeia de transações monetárias concede a eles o poder de decisão de quais atores permanecem ou não dentro do sistema.
A guerra da Ucrânia tornou esse debate ainda mais latente no cenário político internacional, devido às sanções econômicas implementadas pelos Estados Unidos e de países europeus à Rússia, que se beneficiaram da dominância do dólar para penalizar Moscou e tentar excluí-los do sistema internacional. Nesse sentido, o presidente Vladimir Putin, durante a cúpula dos BRICS em agosto, caracterizou o congelamento de seus ativos como uma ação que “pisa em todas as normas e regras básicas do livre comércio”.
Além do caso das sanções russas, é possível apontar outros países que foram afetados por essa política norte-americana , como o Irã em 2018, quando o então presidente Donald Trump congelou as contas bancárias do país, enquanto posteriormente — no governo Biden — ocorreu a transferência de US$ 6 bilhões de dinheiro do Irã para troca de prisioneiros americanos no Oriente Médio.
As constantes intervenções de Washington e os riscos associados às obrigações com a dívida denominada em dólar são fatores que ajudam a provocar mudanças quanto a percepção do dólar no cenário internacional. Como forma de superar essa situação, observa-se o início de movimentos como as transações comerciais entre Rússia-China e Brasil-China por meio de suas moedas nacionais e sem o intermédio do dólar, como também negociações independentes entre a Índia e os Emirados Árabes Unidos, e até mesmo alguns aliados antigos da Casa Branca como a França. Além disso, a forte resposta à emissão de títulos em larga escala pela Comissão Europeia em outubro realça a demanda em potencial por alternativas à dívida denominada em dólar.
2. Problemas da hegemonia econômica do dólar para os países emergentes
Além dos problemas geopolíticos enfrentado pelos países devido o predomínio do dólar, há também problemas inerentemente econômicos. A volatilidade cambial que ,devido às flutuações no dólar com eventuais instabilidades econômicas ou políticas no país, acaba afetando os preços internos e a as suas balanças comerciais, que não tem opção a não ser permanecer com o comércio dessa moeda.
Gráfico 1 – Composição da moeda
“[…]o valor do dólar tem permanecido praticamente inalterado, enquanto a participação da moeda norte-americana nas reservas mundiais tem diminuído, indica que os bancos centrais de fato têm se afastado gradativamente do dólar.” (FMI, 2021). Apesar da mudança ainda ser pequena e o dólar ainda representar uma grande parte das transações comerciais, ela também é significativa para demonstrar o início de um movimento de maior democratização das relações econômicas entre os países em busca de sua autonomia e menor submissas à ordem estadunidense. Com isso, essas mudanças já estão sendo sentidos dentro dos Bancos Centrais que já não possuem as mesmas quantidades de reservas em dólar como antes e começam a abrir espaço para novas moedas no mercado.
Assim, a iniciativa de desdolarização da economia dos BRICS pode contribuir ainda mais para esse movimento e conceder mais relevância aos países do Sul Global no cenário econômico internacional.
IV. O papel chinês na desdolarização
Com sua economia e relevância política crescente no cenário internacional, a China , uma das maiores potências mundiais, está cada vez mais empenhada em diminuir a supremacia econômica estadunidense e fortalecer novas formas de se comercializar por meios menos dependentes do dólar e mais seguras para a sua soberania. Assim, a expansão do bloco para países com relações diplomáticas delicadas com os americanos e o aumento de suas relações comerciais por intermédio de moedas nacionais são fatores que revelam seus objetivos finais com esses movimentos políticos.
A China como um dos países com maiores reservas em dólar e como ator principal dentro dos BRICS é uma peça importante para as tendências de desdolarização, já que sua influência nesses dois elementos é fundamental para a continuidade dessa iniciativa e para propagar as ideias de diversificação das reservas internacionais. No entanto, é difícil que a China lidere sozinha esse novo fardo político, já que para que isso ocorra os demais países do sistema internacional devem permitir a conversibilidade total de suas moedas.
V. Desafios para a desdolarização
A desdolarização da economia é um movimento que traria vantagens econômicas para países emergentes do Sul Global já que abriria mais espaço de relevância dentro dos debates internacionais e diminuiria as consequências do poder da arma dólar, além da dependência monetária do Banco Central dos EUA e aumentaria os financiamentos em moedas nacionais. No entanto, há grandes empecilhos para alcançar esses objetivos, que faz com que as vantagens, se adquiridas, ocorram apenas a longo prazo pelos Estados. Assim, devido a sua complexidade é importante dividirmos essa discussão em dois aspectos — político e técnico.
1. Aspectos políticos
- A resistência norte-americana em abrir mão de seu controle monetário internacional proporcionado pelo uso quase unânime do dólar.
- A heterogeneidade política e econômica dos países que compõem os BRICS.
(I) Esse é um aspecto quase inevitável mesmo com um governo democrata ou republicano na presidência dos Estados Unidos. “Para Carla Norrlöf, exatamente porque há uma disputa entre poderes estabelecidos e em expansão, os EUA deverão insistir em manter o predomínio do dólar.” (UFRGS, 2023). Os países membros dos BRICS devem ser pressionados a permanecer com uma economia baseada no dólar, seja por pressão da Casa Branca ou pelas dificuldades em se afastar do padrão dólar naturalmente, devido a confiança dos investidores na moeda e nos ativos americanos. Além disso, é difícil de observar em qualquer uma das alternativas propostas viáveis e atraentes para a troca do dólar, como na iniciativa de cada país comercializar com sua própria moeda nacional e o empreendimento do BRICS Coin como substituição do status hegemônico do dólar.
(II) Devido a essa característica, o bloco apresenta dificuldades de firmar acordos entre si, já que cada país possui interesses e perspectivas nacionais diferentes uma das outras, em especial com a entrada dos novos membros, que aumenta ainda mais essas disparidades culturais, políticas e econômicas e dificulta uma coesão de interesses do grupo. Além disso, essas mesmas características fazem com que uma possível moeda BRICS possa gerar desconfiança de sua credibilidade e afastar investidores e comerciantes, já que a instabilidade política e a falta de transparência de muitos desses governos não representam confiança para gerir uma moeda para transações comerciais globais.
2. Aspecto técnico
A conjuntura formada dos BRICS+ é apresentada pela mídia como um grupo de grande força econômica — que ao somar o Produto Interno Bruto (PIB) dos países que compõem o bloco — argumenta a sua capacidade de contornar a política monetária já estabelecida e formar um fórum para o Sul Global que conceda mais poder a esses países. Porém, esse desafio não é vencido apenas por essa razão, diferentemente do que ocorreu na União Europeia, os países que compõem os BRICS não estão ligados por fronteiras, ou possuem conjunturas históricas similares e de períodos de cooperação mútua, nem mesmo compartilham de um ordenamento político semelhante. Assim, esses fatores corroboram para que seja mais difícil uma união do globo para acordos mútuos e para a formação de uma moeda única para trocas comerciais entre os países, assim como ocorreu na União Europeia.
VI. Resolução da XVI cúpula de Kazan
O documento da cúpula de 2024 em Kazan enfatiza a necessidade de reformas na “arquitetura financeira internacional para enfrentar os desafios financeiros globais, incluindo a governança econômica global” (gov, 2024) para que reflitam a nova ordem econômica e geopolítica atual no mundo para uma maior inclusão dos países do Sul Global nas discussões e que os representem mais na ordem econômica internacional. Nesse sentido, os países concordaram em trabalhar em conjunto para estabelecer uma “viabilidade do estabelecimento de uma infraestrutura de depósito e liquidação transfronteiriça independente” (gov, 2024) e “continuar a considerar a questão das moedas locais, instrumentos e plataformas de pagamento e nos apresentar os resultados até a próxima Presidência” (gov, 2024).
VII. Brasil e as possíveis consequências externa
Gráfico 2 – Reservas Internacionais do Brasil
Fonte: Banco Central do Brasil. Produção própria
Para o Brasil, no campo econômico, esse movimento traz possibilidade de benefícios futuros como o aumento da sua proteção cambial que concede vantagens para o comércio de importação e exportação do país, além de permitir melhor gestão dos custos e preços com o comércio mais diversificado.
Já para o campo político, essa característica mais antiocidental que o bloco vem adquirindo, com a entrada dos novos membros e com o aumento dos debates de desdolarização, preocupa alguns analistas, já que o Brasil como um país com uma política e uma economia ligada e semelhante à outras do Ocidente e com boas relações diplomáticas com países europeus e com os Estados Unidos, deve buscar manter a equidistância e não se alinhar totalmente com nenhum dos lados para que não seja afetada as nossas relações internacionais tanto com o Sul quanto com o Norte Global.
VIII. Conclusão
Diante do que foi posto, ao buscarem maior autonomia e representatividade mundial, a iniciativa de desdolarização econômica dos BRICS se configura como um movimento importante para a reordenação da ordem internacional com potencial impacto econômico mundial e onde esses países juntam suas forças econômicas e sua influência política para se colocarem no âmago das discussões. Com isso, eles estão construindo um início de um projeto que apesar de ser complexo e difícil de ser concretizado, ainda sim é um movimento relevante para os estudos nas relações econômicas internacionais. A continuidade e o sucesso desse projeto depende de vários fatores internos e externos aos BRICS, porém os desdobramentos das disputas pelo poder global, a reação dos Estados Unidos e de seus aliados a esse movimento está em aberto e podem determinar a ordem mundial nas próximas décadas.
IX. Referências
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BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. XVI Cúpula do BRICS – Kazan, Rússia, 22 a 24 de outubro de 2024-Declaração Final. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/xvi-cupula-do-brics-2013-kazan-russia-22-a-24-de-outubro-de-2024-declaracao-final. Acesso em: 6 nov. 2024.
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REGINALDO Nogueira. Dólar como moeda internacional? Entenda o cenário geopolítico mundial. Ibmec insights:[s.l]. 10 maio de 2023. Disponível em : https://blog.ibmec.br/sem-categoria/dolar-como-moeda-internacional-entenda-o-cenario-geopolitico-mundial/. Acesso em : 9 de nov. 2024.
- Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail de contato da autora: emanuellyaraujoferreira@gmail.com ↩︎
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