Autor (a): Rayssa Alves de Souza 1

Data de publicação: 20/01/2025

Revisor: Mell Monteiro

I. Introdução

 Quando, ao longo de uma guerra há uma grande perda de soldados, uma estratégia que pode ser utilizada pelos países em conflito para manter um número satisfatório de soldados no front, é a admissão de detentos do sistema carcerário como mercenários ou militares, e em troca do serviço prestado, são oferecidos aos indivíduos compensações, que podem variar entre altos salários, até o perdão judicial. Embora não seja comum a ampla divulgação desses dados, a utilização de prisioneiros ainda é uma realidade em muitos conflitos.  

II. Grupo Wagner

A primeira aparição registrada do grupo Wagner foi em 2014, quando a Rússia enviou tropas para anexar o território da península da Crimeia da Ucrânia. Fundado por Dmitry Utkin, e liderado com auxílio de Yevgeny Prigozhin, o grupo é uma empresa militar privada com fortes ligações ao governo russo. O Wagner é um grupo militar privado de mercenários que luta ao lado do exército russo contra a Ucrânia. Os mercenários produziam diversos ataques de “bandeira falsa” – uma atividade política e/ou militar com a função de culpar o oponente pelo ataque sucedido – o objetivo de tais investidas é garantir a possibilidade de um contra-ataque para a Rússia.

A utilização de condenados russos no front do conflito acontece principalmente com o auxílio do grupo de mercenários. O antigo líder, Prigozhin, teve um papel essencial ao executar a função de buscar novos soldados para a guerra nas colônias prisionais russas.  A maioria dos prisioneiros foram captados na região de Samara, no início de 2022, cerca de 10,2 mil pessoas estavam encarceradas em colônias na região, e em 2023, somente 7,5 mil.

Gráfico 1 – Baixas do Grupo Wagner por semana da guerra

Fonte: Zona Media (2024)

Gráfico 2Baixas de prisioneiros no front por semana de guerra

Fonte: Zona Media (2024) 

III. O sistema prisional russo e o recrutamento de prisioneiros para a guerra

O sistema carcerário russo funciona em sua maioria com o formato de colônias penais, modelo herdado da União Soviética. As colônias são elaboradas por centros fechados por arames e concertinas, com os presidiários juntos em grandes galpões de madeira ou tijolo, e não há uma divisão de acordo com a gravidade do crime cometido. Na Rússia existem quatro tipos de colônias penais, cada uma com um modelo de regime. As menos rígidas são chamadas de colônias-assentamentos, nessas os presos podem se movimentar como quiserem no prédio, são geralmente alojados em grandes quartéis, podem se encontrar com seus parentes e usar roupas civis. Nas colônias penais de regime comum, a supervisão dos agentes é muito mais rigorosa, os presos são alojados em grandes barracas tendo até 150 leitos em cada uma. Ademais, os detentos ficam sob constante supervisão e não podem circular pela instalação. 

 Já em colônias de regime estrito e regime especial, os presos enfrentam mais restrições, eles são alojados em celas trancadas com capacidade de 20 a 50 pessoas. Mesmo com uma grande estrutura, os presos são submetidos a situações degradantes, e necessitam de itens básicos, como papel higiênico, escova de dentes e absorventes. Além de serem forçados ao trabalho escravo, não recebem atendimento médico, e passam por abusos e torturas durante o período de cumprimento de pena. Na teoria, a jornada de trabalho não pode ser superior a 40 horas semanais, e de acordo com a lei, os detentos de colônias penais devem receber salário pelo serviço, e alguns benefícios como visitas adicionais da família. No entanto, segundo a ativista Inna Bajibina, as normas não são seguidas na prática.  

Detentos que são incapazes de trabalhar recebem punições, ou são forçados a trabalhar em funções que lhes geram poucos rublos ao fim do mês. Há relatos de ex-presidiários que tinham uma jornada de trabalho de 12 horas, durante 6 dias por semana. Para fraudar as regulamentações trabalhistas, os presos seriam forçados pelos agentes penitenciários a assinar um termo que comprovasse que desejavam trabalhar em maiores jornadas voluntariamente. Ao longo dos últimos anos, a população carcerária tem diminuído significativamente, unidades prisionais de ao menos 35 regiões russas perderam cerca de 17.248 presos no ano de 2022, sendo duas vezes maior que o dobro do ano anterior. O governo russo chegou a anunciar que o sistema carcerário perdeu 33 mil presos em 2022, antes de suspender a divulgação desses dados. Esses números, apesar de serem aproximações, podem ser explicados através do recrutamento de prisioneiros pelo Grupo Wagner. A entrada de detentos para o grupo é uma estratégia para suprir a falta de soldados que acontece pelo acúmulo de perdas na guerra.  

O antigo chefe da organização, Evgeny Prigozhin, compareceu a algumas colônias para oferecer alguns benefícios em troca do serviço paramilitar. O acordo estabelecido seria para seis meses de trabalho no campo de batalha, após os detentos receberiam perdão judicial. Apesar disso, muitos detentos que se unem ao grupo são colocados direto na linha de frente e servem de escudo para os membros mais antigos e experientes do Wagner. Apesar do amplo risco de morte, muitos prisioneiros russos optam por ir à guerra, pois após serem submetidos às condições degradantes do sistema carcerário, diante das promessas dos benefícios que são oferecidos a eles, lutar pelo país parece uma opção melhor a permanecer encarcerado.  

IV. Gastos com os soldados

Apesar de a Rússia não ser transparente referente aos gastos com militares, em 2021, um ano antes do início da guerra, a Rússia investiu mais de US$ 65 bilhões em sua força bélica, enquanto a Ucrânia investiu cerca de US$ 5,9 bilhões no mesmo ano. Ademais, além do salário, os militares russos podem receber bônus e compensações adicionais pelo serviço prestado. Em julho de 2024, o prefeito de Moscou, Sergey Sobyanin anunciou um plano de incentivo para maior alistamento, onde os novos combatentes receberiam um bônus pela assinatura do contrato no valor de 1,9 milhão de rublos (por volta de R$ 123,5 mil), além de terem uma previsão de receber em torno de 5,2 milhões de rublos (em torno de R$338 mil) ao longo do primeiro ano de serviço. Além de cláusulas adicionais que previam compensações financeiras em caso de ferimentos ou morte em combate, com valores que variavam entre 488.132 rublos (aproximadamente 32 mil reais) e 979.315 rublos (mais ou menos 64,2 mil reais), e 2.928.792 rublos (aproximadamente 192 mil reais) para às famílias dos soldados mortos em confronto.

Gráfico 3 – Comparação salarial e de compensação

Fonte: (O globo 2023);(O globo 2024). Elaboração própria. 

A remuneração dos oficiais é superior e varia de acordo com a patente. No entanto, todos os recrutas recebem bônus por participar de ofensivas, porém, considerando os últimos aumentos e benefícios, o salário-mínimo anual de soldados conscritos que estejam lutando no campo de batalha, pode exceder o salário médio na Rússia em mais de três vezes. A tentativa de reunir mais soldados para a guerra, deu-se devido às grandes baixas do exército russo. Uma estimativa do Ministério da Defesa do Reino Unido, mostra que em torno de 70 mil soldados russos foram mortos ou gravemente feridos entre maio e junho de 2023, dados que explicam a tentativa de ampliar o recrutamento. Além disso, o esforço para aumentar o número de soldados em campo através do recrutamento de prisioneiros tem causado reações adversas pela sociedade. Conforme defensores dos direitos humanos russos, milhares de ex-detentos morreram poucos dias ou até mesmo poucas horas após entrarem para o conflito.

Como forma de compensação pelos serviços prestados ao governo, Prigozhin ofereceu aos detentos um salário mensal de 100 mil rublos por mês (R$7,3 mil), esse valor seria quase o dobro do salário médio mensal russo, além de oferecer cerca de 80 mil rublos (R$ 5.850 mil) em indenizações para a família em caso de morte, e se sobrevivessem ao período de seis meses na guerra, receberiam o perdão judicial. Apesar de serem oferecidas compensações pelo serviço, a política de aceitar que condenados russos se juntem ao Wagner demonstra o risco que o Presidente Vladimir Putin está disposto a correr para garantir a vitória, pois ao conceder indulto a criminosos expostos a toda a brutalidade do sistema carcerário, e ao cenário da guerra, e enviá-los de volta para casa sem políticas para ressocialização desses indivíduos, se corre o risco de gerar mais violência e reincidência para a sociedade russa. 

V. Considerações Finais

A partir do cenário apresentado, a utilização dos prisioneiros russos na guerra pode gerar diversas reações. Embora a Rússia não seja completamente transparente referente aos seus dados em termos econômicos, é possível prever desequilíbrios. Em diversas prisões ao redor do mundo, os detentos são forçados a trabalhar e ao invés de receberem o salário pela mão de obra, o dinheiro é direcionado para a manutenção da unidade prisional, de maneira a financiar a própria estadia, como é o caso de muitos presídios dos Estados Unidos. Dessa maneira, é possível comparar com o caso russo, onde os presos são forçados a trabalhar, e em sua grande maioria não recebem o devido salário, porém, quando os detentos se juntam ao combate, os seus gastos de estadia, alimentação, saúde, treinamento militar e armamentos, ficam completamente por conta do Estado, demonstrando um enfraquecimento ainda maior, já que em cenários de guerra, é comum que os países diretamente envolvidos tenham suas economias afetadas.  

Indo além, o recrutamento também pode impactar âmbitos sociais. A reincidência entre os detentos recrutados é uma realidade, e uma nova preocupação surge: proteger os civis dos egressos do sistema carcerário, que retornaram para casa após finalizado o contrato de serviço militar. Há relatos de antigos soldados russos cometendo crimes como assassinato e estupro, após retornar da guerra. Muitos destes, são homens contratados pelo Wagner, e em troca receberam o indulto da pena, porém, este cenário pode apresentar problemas para o Kremlin, considerando que muitos destes soldados que lutam na “operação militar especial” são retratados como heróis. É necessário reforçar a importância e necessidade de ressocializar esses indivíduos e os reintegrar à sociedade, oferecendo emprego e educação. Segundo Nina Ostanina, deputada do partido comunista russo: “Em nenhum caso podemos liberar as agências de aplicação da lei do controle sobre aqueles que retornaram da zona de operação especial e estavam anteriormente na prisão. Isso é, para dizer o mínimo, para proteger a sociedade dessas pessoas”.

VI. Referências

A REFERÊNCIA. Com efetivo militar reduzido, Moscou promete R$ 340 mil a quem for à guerra. 2024. Disponível em: https://areferencia.com/europa/com-efetivo-militar-reduzido-moscou-promete-r-340-mil-a-quem-for-a-guerra/. Acesso em: 16 jan. 2025. 

A REFERÊNCIA. População carcerária russa caiu drasticamente durante recrutamento, aponta pesquisa. Disponível em: https://areferencia.com/europa/populacao-carceraria-russa-caiu-drasticamente-durante-recrutamento-aponta-pesquisa/ Publicado em: 23 abr. 2023. Acesso em: 8 jan. 2025. 

AL JAZEERA. Who was Dmitry Utkin, a key Wagner mercenary who died alongside Prigozhin? Al Jazeera, 28 ago. 2023. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/8/28/who-was-dmitry-utkin-a-key-wagner-mercenary-who-died-alongside-prigozhin. Acesso em: 17 jan. 2025. 

BBC. Morte de Prigozhin: o futuro do grupo Wagner após acidente aéreo. BBC, 27 ago. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c62370nkqrzo. Acesso em: 17 jan. 2025. 

FALKOWSKI, Maciej. Russia behind bars: peculiarities of the Russian prison system. OSW Commentary, n. 298, 7 fev. 2019. Disponível em: https://www.osw.waw.pl/en/publikacje/osw-commentary/2019-02-07/russia-behind-bars-peculiarities-russian-prison-system Acesso em: 16 jan. 2025. 

FECAP. Economia e guerra: veja como conflitos causam prejuízos aos países envolvidos. Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado, 19 mar. 2024. Disponível em: https://www.fecap.br/2024/03/19/economia-e-guerra-veja-como-conflitos-causam-prejuizos-aos-paises-envolvidos/ Acesso em: 16 jan. 2025. 

G1. Guerra na Ucrânia: o que faz o misterioso grupo Wagner, de mercenários ligados à Rússia. G1, 24 jun. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/ucrania-russia/noticia/2023/06/24/guerra-na-ucrania-o-que-faz-o-misterioso-grupo-wagner-de-mercenarios-ligados-a-russia.ghtml Acesso em: 17 jan. 2025. 

LOPES, Adriana; SANTOS, Henrique. Impacto da guerra na Ucrânia. Ministério das Finanças, abril de 2023. 

NOGUEIRA, Lucas. Brasileiro conta por que decidiu largar tudo e ir ao front da guerra na Ucrânia. Metrópoles, 10 mar. 2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/mundo/brasileiro-conta-por-que-decidiu-largar-tudo-e-ir-ao-front-da-guerra-na-ucrania Acesso em: 14 jan. 2025.

O GLOBO. Alistamento obrigatório e bônus em dinheiro: Rússia e Ucrânia apostam em táticas para repor baixas no front. O Globo, 24 jul. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2024/07/24/alistamento-obrigatorio-e-bonus-em-dinheiro-russia-e-ucrania-apostam-em-taticas-para-repor-baixas-no-front.ghtml Acesso em: 14 jan. 2025. 

O GLOBO. Pessoas muito perigosas: detentos russos que combateram na Ucrânia estão voltando para casa. O Globo, 19 jan. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/01/pessoas-muito-perigosas-detentos-russos-que-combateram-na-ucrania-estao-voltando-para-casa.ghtml Acesso em: 17 jan. 2025. 

REUTERS. In push for more Ukraine troops, city of Moscow hikes pay for contract soldiers to $60,000 a year. 23 jul. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/push-more-ukraine-troops-city-moscow-hikes-pay-contract-soldiers-60000-year-2024-07-23/. Acesso em: 16 jan. 2025. 

REUTERS. Putin doubles signing bonuses for volunteers to fight in Ukraine. Reuters, 31 jul. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/putin-doubles-signing-bonuses-volunteers-fight-ukraine-2024-07-31/ Acesso em: 14 jan. 2025. 

REUTERS. Russian politician says law needed to protect society from convicts who fought in Ukraine. 21 jun. 2024. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/russian-politician-says-law-needed-protect-society-convicts-who-fought-ukraine-2024-06-21/ Acesso em: 17 jan. 2025. 

SAHUQUILLO, Maria R. Superlotação e trabalho forçado: como são as colônias prisionais que serão o destino do principal opositor de Putin. O Globo, 23 fev. 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/superlotacao-trabalho-forcado-como-sao-as-colonias-prisionais-que-serao-destino-do-principal-opositor-de-putin-24893638 Acesso em: 12 jan. 2025. 

THE GUARDIAN. US prison workers face low wages and exploitation. The Guardian, 15 jun. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2022/jun/15/us-prison-workers-low-wages-exploited Acesso em: 17 jan. 2025. 

ZONA.MEDIA. Потери России в войне с Украиной на декабрь 2024 года. Zona.Media, 2024. Disponível em: https://zona.media/casualties. Acesso em: 18 jan. 2025. 

ZONA.MEDIA. Карта «Вагнера». К началу года колонии в 35 регионах России недосчитались 17 тысяч заключенных. Mediazona, 17 abr. 2023. Disponível em: https://zona.media/article/2023/04/17/17000 Acesso em: 16 jan. 2025.

  1. Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail de contato da autora: rayssaalves0406@gmail.com ↩︎

Tags:

No responses yet

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *