Autor: Richard Rodrigues de Souza Silva1
Data de publicação: 15/10/2024
Revisor: Mell Monteiro
I. Introdução
O prolongamento da Guerra da Ucrânia e a crescente atuação do Ocidente no fornecimento de apoio econômico, militar e político ao lado ucraniano está promovendo uma reasserção dos assuntos nucleares no âmbito internacional. Com o fenômeno da guerra, os gastos nucleares dos Estados envolvidos diretamente (Rússia) e indiretamente (França, Reino Unido, Coreia do Norte, Índia, China e [notadamente] os Estados Unidos) apresentaram uma tendência de alta nos últimos anos, o que pode ser visto sob um dos espectros das consequências desse conflito no âmbito internacional.
II. A mudança da doutrina nuclear russa
A retomada da importância dos arsenais nucleares (e das ameaças de utilização destes) – elemento que não se mostrava tão presente desde o fim da Guerra Fria – surge vinculado à tentativa russa de dissuadir maiores comprometimentos do Ocidente ao esforço de guerra ucraniano. Nesse sentido, sob a ótica tradicional dos estudos estratégicos e das ciências militares, a utilização de armas nucleares como elemento dissuasório é visto como um meio alternativo de promover a contenção dos oponentes geopolíticos, mostrando-se sob termos menos onerosas e mais eficazes do que as forças militares convencionais dos Estados (exército, marinha e aeronáutica). Assim, a crescente retomada dos preceitos de dissuasão nuclear pela Rússia está vinculada não apenas a necessidade de suprimir a inserção do Ocidente no conflito, mas também como um meio de suplementar a capacidade de reação internacional de Moscou a agressões externas em um momento de desgaste (e reestruturação) das suas forças militares convencionais em função da Guerra.
Afora as recorrentes ameaças da Rússia – desde a deflagração da guerra – em utilizar seu armamento nuclear, essa situação passou a institucionalizar-se após a alteração oficial da doutrina nuclear do país no dia 25 de setembro de 2024. Essa alteração de princípios e flexibilização das condições de utilização desses armamentos, foi acompanhado de um pronunciamento oficial do presidente Vladimir Putin, que ressaltou dois pontos centrais do novo delineamento de uso de armas nucleares pelo país:
1 – Considera qualquer ataque em massa de mísseis convencionais, drones e aeronaves, que possam a vir causar danos a soberania nacional, como um ato legitimador da utilização de armas nucleares;
2 – Prevê que o apoio de países detentores de armas nucleares a países não detentores de artefatos nucleares em Estado de beligerância com Rússia pode ser configurado como um ataque conjunto externo, tornando ambos alvos legítimos;
III. O Panorama Internacional de gastos com armamento nuclear
Contudo, essas alterações da doutrina nuclear russa não devem ser observadas apenas a partir de uma perspectiva centralizada nas posturas retóricas e doutrinárias de Moscou, mas também dos demais Estados detentores de capacidades bélicas nucleares. Desde o início do conflito, os países envolvidos (direta ou indiretamente) apresentaram um crescimento total nos seus gastos nucleares quando comparados aos anos anteriores.
Tabela 1 – Gastos nucleares dos países envolvidos na Guerra da Ucrânia (em bilhões de dólares)
Fonte: Elaboração própria. ICAN, 2019; 2020; 2021; 2022; 2023.
Como pode ser observado acima, na tabela 1, todos os países (excetuando-se o Reino Unido) apresentam os gastos nucleares de 2023 acima dos patamares observados em 2018. Assim, demonstra-se não só recuperação dos cortes orçamentários desse setor dos anos provenientes da pandemia da Covid-19, como também é possível evidenciar um aumento total dos gastos nucleares desses países.
Notadamente – quando observado o panorama geral – os gastos estadunidenses destoam dos demais, com os valores despendidos quase dobrando nos últimos 5 anos (um aumento aproximado de 74%), demonstrando um maior comprometimento no preparo, desenvolvimento e modernização dos seus arsenais nucleares. No cômputo geral, os Estados Unidos representam atualmente mais de 50% dos gastos globais realizados na manutenção e desenvolvimento de armas nucleares, como pode ser visto no gráfico 1 e 2, abaixo. 4
Gráfico 1 – Gastos globais com armamento nuclear (em bilhões de dólares)
Fonte: Elaboração própria. ICAN, 2019; 2020; 2021; 2022; 2023.
Gráfico 2 – Participação nacional nos gastos globais de armamentos nucleares
Fonte: Elaboração própria. ICAN, 2019; 2020; 2021; 2022; 2023.
Portanto, a partir desses gráficos, é possível identificar que a retomada da primazia dos ditames da política nuclear não é um fenômeno isolado a Moscou, mas encontra-se disseminado no restante da comunidade internacional. Nesse contexto, é marcante o papel assumido pelos Estados Unidos no processo de reafirmação dos armamentos nucleares na política internacional, vistas nas crescentes proporções de gastos realizados nesse setor das forças armadas americanas.
De acordo com o relatório da Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), de 2024, o aumento desses gastos relaciona-se diretamente a modernização dos arsenais nucleares e de seus meios de entrega (mísseis balísticos, aviões e submarinos), sendo um fenômeno generalizado a todos os países possuintes desse artefatos. Essa dinâmica, segundo o SIPRI, pode ser vista a partir do crescimento das ogivas nucleares operacionais mantidas por esses Estados, além da diminuição da transparência – desde o início da Guerra da Ucrânia – concernentes aos seus artefatos nucleares. Nesse sentido, é marcante a expansão do número de ogivas ativas do Reino Unido e, principalmente, da China e a diminuição de informações disponibilizadas por Pequim, Washington e Londres sobre as suas capacidades nucleares nos últimos anos.
Somado a isso, também há a alteração das táticas e princípios operacionais de utilização de armas nucleares de outros países, promovendo alterações dos fundamentos estratégicos de implementação destas. Nesse espectro, tem-se em 2024 a inédita implantação de armas nucleares ativas em tempos de paz pela China (geralmente só realizada em períodos de beligerância), do incremento da produção de armas nucleares táticas pela Coreia do Norte e busca da Índia em aumentar o alcance efetivo dos seus meios de entrega (nesse primeiro momento, essencialmente de mísseis balísticos).
Essas mudanças, apesar de menos publicizadas que as alterações de doutrina nuclear da Rússia, apresentam-se como elementos fundamentais para a observação dos fenômenos contemporâneos da segurança internacional. Nas palavras do diretor do SIPRI, Dan Smith, sobre o atual panorama internacional temos uma perspectiva, no mínimo, pessimista para os próximos anos:
Nós estamos agora em um dos períodos mais perigosos da história humana. As fontes de instabilidade são múltiplas: rivalidades políticas, desigualdades econômicas, perturbações ecológicas, uma corrida ao armamentista cada vez mais rápida. O abismo aproxima-se e é tempo de as grandes potências recuarem e refletirem. De preferência, em conjunto (SIPRI, 2024).
Adicionalmente, corroborando a essas falas do diretor do SIPRI, que foram realizadas em junho de 2024, há o surgimento de novas variáveis que podem tornar o cenário internacional ainda mais instável no âmbito nuclear. Em 5 de outubro do mesmo ano, na esteira dos tensionamentos entre Israel e Irã, há suspeitas de que tenha sido realizado o primeiro teste de armas nucleares de Teerã. Se confirmado a obtenção de capacidades bélicas nucleares pelo Irã, terá a configuração de mais um país com capacidades nucleares envolvidas no conflito de forma indireta na Ucrânia, tornando a política internacional contemporânea ainda mais instável.
IV. Considerações Finais
Portanto, a revisão da política nuclear russa não pode ser vista apenas sob o bojo de uma postura mais ofensiva e agressiva na Guerra da Ucrânia e da política internacional (apesar de que definitivamente não possa ser descaracterizada como tal), mas sim estando diretamente vinculada a um fenômeno mais abrangente de uma possível retomada da utilização das armas nucleares como um elemento de política externa e de dissuasão no âmbito global. Essa situação, que inerentemente carrega elementos sistêmicos de interpretação e análise das Relações Internacionais e outras áreas de conhecimento, evidencia o progressivo abandono dos preceitos do pós-Guerra Fria de diminuição dos gastos militares e do desmantelamento dos arsenais nucleares.
Assim, o aumento dos gastos globais com armas nucleares não pode ser imputado apenas à Rússia e a degradação das suas capacidades de dissuasão por meio de suas forças armadas convencionais, mas sim por conta de uma ampla gama de atores que motivados (ou incentivados) pela Guerra da Ucrânia buscaram retomar a utilização de armas nucleares como uma ferramenta de política externa. Esse panorama, se agrega a tensões atuais no Oriente Médio (Guerra na faixa de Gaza e no sul do Líbano), a ausência de perspectiva do encerramento da beligerância entre Rússia e Ucrânia no leste europeu, além da própria reação estadunidense à expansão político-econômica da China no cenário internacional.
Por fim, mesmo que atualmente haja um consenso dos analistas e pesquisadores quanto a não utilização de armas nucleares – por parte da Rússia – na Guerra da Ucrânia, infere-se que a alteração da doutrina nuclear de Moscou configura uma quebra de precedente internacional no uso de armas nucleares nos últimos trinta anos, que pode ser seguido por outros países no âmbito global. Esse cenário – se concretizado – tem o potencial de alterar fundamentalmente os princípios da Segurança Internacional do pós-Guerra Fria, reafirmando as disputas estatais como elemento central dos conflitos vindouros, em detrimento da importância anteriormente dada aos conflitos insurgentes e ao terrorismo internacional.
V. Referências Bibliográficas
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- Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail de contato do autor: Richardrssinternacionalista@outlook.com.br ↩︎
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