Autor: Evelyn Ariel Cardoso Barbosa1
Data de Publicação: 30/11/2024
Revisor: Mell Monteiro
I. Introdução
Nos últimos anos, o cenário global tem sido fortemente impactado pela reconfiguração das relações internacionais e econômicas em consequência da Guerra na Ucrânia, tornando-se um marco não apenas pelo impacto militar e territorial, mas também pelas suas repercussões no campo da cibersegurança. A conjuntura da Cibersegurança Russa é um fator crucial que traz uma perspectiva diferente sobre o conflito, o chamado isolamento digital russo não é um fenômeno exclusivo ou resultante da guerra na Ucrânia, mas sim um reflexo de uma estratégia mais ampla e profunda, que se construiu ao longo das últimas décadas. Embora esse isolamento digital tenha se intensificado com o impacto das sanções e da guerra, ele já estava em andamento como parte de um projeto mais amplo de autonomia cibernética. A construção do Runet Soberano – uma internet nacional que visa reduzir a dependência de infraestruturas estrangeiras e reforçar a segurança digital do país, é a peça central entre as transformações de uma nova era de cibersegurança que têm implicações geopolíticas tanto para a Rússia quanto para a comunidade internacional.
Ao abordar esse fenômeno, percebe-se como a busca pela soberania cibernética, implementada via um isolamento digital forçado, molda a economia política da cibersegurança na Rússia. Em particular, investiga-se o impacto dessa medida tanto no nível doméstico, com suas consequências para a sociedade e à economia russa, quanto no plano internacional, observando a interação com outros países e os efeitos sobre a governança global da internet. Portanto, é imprescindível explorar as dinâmicas complexas entre cibersegurança, política interna e as repercussões geopolíticas dessa nova ordem digital, cujos contornos são cada vez mais evidentes no cenário atual.
II. Cenário Internacional e Isolamento Digital: Impactos da Guerra na Ucrânia
Para avaliar esse cenário, o Global Cybersecurity Index (GCI), um relatório publicado pela International Telecommunication Union (ITU), agência especializada das Nações Unidas, avalia o desempenho dos países em relação à segurança cibernética, o comprometimento e capacidade de diferentes nações em proteger suas infraestruturas digitais e responder a incidentes cibernéticos. Através de uma análise baseada em dados objetivos e indicadores específicos, o GCI classifica os países de acordo com suas políticas, legislação, recursos, colaboração internacional e capacidade técnica em cibersegurança.
Gráfico 1: Níveis de Desempenho por Região
Fonte: Elaboração própria. ITU, 2024
Tabela 1 – GCI resultados: Score e ranking global 2020
Fonte: Elaboração própria. ITU, 2020
Tabela 2 – Tier performance global 2024
Fonte: Elaboração própria. ITU, 2024
Observando a mudança no índice, percebe-se que sua medida alterou-se de ranking para zonas de performance com base no score. Estados Unidos e Reino Unido lideram o índice ao longo desses anos, países como Brasil e Índia subiram de posição, assim como a Ucrânia. A Estônia, por outro lado, assim como a Rússia, tivera uma queda brusca. Tal queda significativa experimentada pela Federação Russa no índice de 2020 para 2024, reflete tanto as sanções internacionais, como também as dificuldades internas em implementar uma infraestrutura de cibersegurança autossuficiente. O conceito de isolamento digital não emergiu como uma consequência direta das sanções impostas ao país após a Guerra na Ucrânia. Esse isolamento, por mais que caracterizado pela exclusão do governo de Moscou das principais infraestruturas e serviços tecnológicos globais, têm origens profundas na natureza de soberania do país, e reflete a visão antiocidental do governo russo. Segundo a imprensa norte-americana New York Times, o objetivo da Rússia na busca por sua soberania digital, e consequentemente o isolamento, é implementar um processo de censura digital mais ambicioso do mundo fora da China.
Como mencionado, esse processo de isolamento digital iniciou-se muito antes da guerra, mas tomou outros rumos como uma ferramenta de manutenção de poder, uma vez que a web passa a ser considerada uma ameaça ao poder do governo. Em Setembro de 2000, o Presidente Vladimir Putin aprovou a Doutrina de Segurança da Informação da Federação Russa inaugurando uma nova perspectiva da internet, assim como novas ameaças são colocadas em foco pelo Kremlin. Essa visão diz respeito em sua essência à internet como uma arma do Ocidente e ameaça à soberania russa, de modo que, em 2014, Putin discursa em São Petersburgo pedindo à Rússia que “lutasse por seus interesses” online e chama a internet de “projeto da CIA”.
A partir de 2018, com a crescente percepção de que a internet era uma ameaça à soberania russa, o governo iniciou a busca por maior controle sobre o espaço digital. Em dezembro do mesmo ano, foi apresentado à Duma Estatal um projeto de lei com o objetivo de isolar tecnicamente a internet russa, criando condições para que a RuNet funcionasse de forma independente do resto do mundo. A Lei Nacional da Internet, que entrou em vigor em 1º de novembro de 2019, representou uma medida concreta nesse sentido, obrigando provedores de internet a instalar equipamentos para monitorar e filtrar tráfego, incluindo inspeção profunda de pacotes (DPI), o que possibilitava ao governo o controle mais efetivo sobre as informações que circulavam pela rede. Além disso, o projeto incluía a criação de um Sistema de Nomes de Domínio (DNS) nacional, essencial para garantir a soberania digital da Rússia. Esse movimento também visava a redução da dependência de tecnologias ocidentais, especificamente nos protocolos de roteamento de tráfego, como o DNS, que historicamente foram criados e dominados pelos países europeus e pelos Estados Unidos. A Rússia via essa dependência como uma vulnerabilidade estratégica e procurava substituir essas tecnologias por soluções nacionais. Esse processo era considerado fundamental para o Kremlin, que tem o Runet Soberano não apenas como uma forma de proteger a infraestrutura digital, mas também como uma maneira de diminuir a possibilidade de manipulação externa.
Apesar da legislação criada em 2019, a implementação efetiva da RuNet Soberana encontrou obstáculos técnicos e logísticos. Em 2019, o regulador de mídia e internet da Rússia, Roskomnadzor, iniciou testes de tecnologias de inspeção profunda de pacotes para monitorar o tráfego de dados e bloquear aplicativos como o Telegram, que se tornaram símbolos de resistência à censura estatal. A tentativa de bloquear o Telegram, que durou quase dois anos e foi finalmente revertida em 2020, destacou as limitações tecnológicas e operacionais da Rússia em isolar completamente sua rede da internet global. Em 2021, com o agravamento das relações internacionais e a crescente pressão das sanções ocidentais, especialmente após a repressão aos protestos contra a prisão de Alexei Navalny, onde Putin declarou que a internet na Rússia deveria ter regras que pudesse impedir “atrair crianças para protestos de rua da oposição”, o Kremlin intensificou suas operações cibernéticas e seu controle sobre a internet. As sanções impuseram ainda mais restrições ao acesso da Rússia a tecnologias ocidentais, acelerando a necessidade de um isolamento digital.
Com a deflagração do conflito em fevereiro de 2022, a Rússia recebeu uma série de medidas restritivas implementadas pelos Estados Unidos, União Europeia e outros aliados ocidentais. Estas sanções incluem uma série de isolamentos, desde a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT, restrições à exportação de tecnologias, bem como a suspensão de serviços de empresas de tecnologia como Google, Apple e Microsoft, além da suspensão de atividades e licenças de radiofusão de vários órgãos didáticos apoiados pelo Kremlin, como Sputinik, Rossiya 24 e outros 16 veículos de mídia da nação. Neste cenário, a cibersegurança tornou-se um elemento central da política econômica e de defesa da Rússia, com implicações profundas para as relações internacionais e a estabilidade global. A compreensão deste processo é fundamental para analisar as dinâmicas atuais e futuras da segurança cibernética no contexto global, uma vez que os desejos de isolar a internet russa têm ideologia e história.
III. Economia Política da Cibersegurança Russa
A cibersegurança, especialmente no contexto da Rússia, não é apenas uma questão técnica, mas um elemento central da estratégia geopolítica e econômica do país. O uso da cibersegurança como uma ferramenta de guerra se integra diretamente com a busca pela soberania cibernética e o isolamento digital. Nesse cenário, a cibersegurança russa é moldada por uma combinação de esforços ofensivos e defensivos, alinhados a objetivos políticos e econômicos que envolvem tanto a proteção de suas infraestruturas quanto o uso de ataques para desestabilizar adversários. A partir dessa perspectiva, segundo as pesquisas de Cibersegurança Global do ITU de 2020, percebe-se um alto desempenho segundo as medidas estabelecidas com cooperação, legalidade e capacidade de desenvolvimento acerca da Cibersegurança Russa, atingindo um alto score.
Figura 1: Gráfico de Perfil de Cibersegurança do país Rússia em 2020
Fonte: ITU Global Cybersecurity Index v4, 2020. Elaboração própria.
Em contrapartida, a atualização dessa pesquisa em 2024, após o desenvolvimento e ápice da guerra, revela uma drástica mudança no desempenho da nação, fatores técnicos, de cooperação e de capacidade de desenvolvimento também obtiveram uma queda que reflete a conjuntura da guerra:
Figura 2: Gráfico de Perfil de Cibersegurança do país Rússia em 2024
Fonte: ITU Global Cybersecurity Index v4, 2024. Elaboração própria
A “economia política da cibersegurança” refere-se ao papel estratégico que as capacidades digitais e cibernéticas desempenham nas relações de poder entre Estados, especialmente no contexto de ameaças de segurança nacional. No caso da Rússia, envolve o uso da tecnologia como um instrumento de poder, onde o controle sobre os sistemas cibernéticos internos e a capacidade de exercer influências externas se combinam para proteger e expandir os interesses nacionais. A cibersegurança russa está, assim, imersa em uma dinâmica de “isolamento digital” e “soberania cibernética”.
Durante a guerra na Ucrânia, as estratégias de cibersegurança se entrelaçam com a lógica de controle interno e a proteção da infraestrutura do Estado contra ataques cibernéticos. Esses ataques russos contra a Ucrânia, como os lançamentos de malware “Foxblade” e “NotPetya”, e a adaptação de novas táticas de espionagem e sabotagem cibernética, fazem parte de uma estratégia coordenada que, além de atacar a Ucrânia, visa também enfraquecer os aliados do país, em especial os membros da OTAN. A cibersegurança, portanto, torna-se uma ferramenta essencial para o fortalecimento da soberania russa e a preservação da integridade política interna, ao mesmo tempo em que visa enfraquecer os adversários fora de suas fronteiras. A Rússia utiliza a segurança cibernética como uma extensão da guerra convencional, a implantação de “malware” destrutivo e de operações de influência cibernética permite à Rússia desestabilizar as infraestruturas do inimigo e manipular a opinião pública global. As implicações econômicas para os países atacados, como a Ucrânia, são graves, pois eles enfrentam tanto os custos imediatos de reconstrução quanto os desafios de proteção de suas infraestruturas críticas. A dependência da nuvem pública, como foi o caso da Ucrânia, demonstrou como as operações de defesa cibernética podem ser reforçadas através da colaboração internacional, mas também como as vulnerabilidades cibernéticas podem ser exploradas por atacantes avançados como os da Rússia.
Por outro lado, a busca pela autossuficiência tecnológica também representa um desafio econômico considerável. Com o prolongamento da guerra, a Rússia enfrenta uma escassez de recursos financeiros e técnicos, exacerbada pelas sanções que atingem não apenas a importação de hardware e software, mas também a capacidade do país de colaborar com grandes players globais da tecnologia. No entanto, a Rússia tem procurado reverter essa situação com o apoio de países não ocidentais, como a China, que oferece alternativas tecnológicas, mas com o risco de aumentar sua dependência de uma única potência externa.
IV. Considerações Finais
O isolamento digital russo, impulsionado pela construção do Runet Soberano, tem gerado consequências globais significativas para a governança digital e as políticas cibernéticas internacionais. Esse movimento, que busca reduzir a dependência da Rússia das infraestruturas tecnológicas ocidentais, reflete a intenção do país de fortalecer sua soberania digital e proteger suas redes internas contra ameaças externas, incluindo sanções e ataques cibernéticos. No entanto, essa estratégia tem levado a uma crescente fragmentação do ciberespaço, prejudicando a universalidade e a integridade da internet global.
A fragmentação da governança digital global também se reflete em políticas adotadas por outros países, como a China, que implementa sistemas de controle semelhantes. Ambos os modelos refletem uma política de soberania digital, mas com abordagens distintas. O Firewall da China foca na censura ativa e no controle sobre o que é acessado, enquanto o Runet Soberano prioriza a autonomia operacional e a continuidade dos serviços essenciais em um ambiente de desconexão forçada. Em termos de impacto geopolítico, o fortalecimento de políticas de soberania digital pela Rússia, assim como pela China, está gerando uma nova dinâmica no ciberespaço global, onde potências tecnológicas buscam moldar sua própria infraestrutura digital de acordo com suas necessidades políticas e de segurança.
Além disso, o isolamento digital russo tem influenciado diretamente as políticas cibernéticas de países ocidentais, como os EUA e os estados da União Europeia, que, diante da crescente ameaça de ataques cibernéticos, principalmente desde a invasão da Ucrânia, têm reforçado suas estratégias de segurança cibernética. A União Europeia, por exemplo, aprovou o Cybersecurity Act e o Digital Services Act, enquanto os EUA estão mais focados na proteção de infraestruturas críticas e na mitigação de campanhas de desinformação, especialmente em processos eleitorais.
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- Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail de contato do autor: eu.evelynariel@gmail.com ↩︎
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